A soja ganhou status de alimento funcional, com
ação preventiva de doenças cardiovasculares, a partir
de pesquisas como a de Clarkson.9 Além disso, o
consumo diário da leguminosa tem sido também
associado à prevenção e ao tratamento de disfunções
como hipertensão,18 hipercolesteronemia55 e osteopo-
rose.38 Na mesma linha, pesquisas38,50 sugerem que a
presença de fitoquímicos na soja faz dela um alimento
funcional capaz de atuar na prevenção dos sintomas
da menopausa, enquanto outros estudos afirmam que
o consumo da soja ajuda a evitar o desenvolvimento
de alguns tipos de tumores, como o de próstata,19,54 de
mama14, 29, 53 e do trato urinário.49
As controvérsias em torno da soja emergiram a partir
do levantamento das contra-indicações ao consumo
regular de soja não-fermentada. Tais restrições já
existiam na cultura alimentar dos antigos asiáticos, que
consumiam regularmente soja fermentada na forma de
miso, shoyo, nato e tempeh e usavam o grão apenas
para adubação verde.47
Estudos identificam diferentes distúrbios nutricionais
decorrentes do consumo de soja não-fermentada, como
interferência na absorção de minerais como ferro11,22 e
zinco,34,48 inibição da enzima tripsina,2,31,42,43 acúmulo de
cálculos renais36 e alergenicidade,44,52 e desaconselham
a ingestão da soja não-fermentada.
Outros estudos sinalizam a relação da soja com
disfunções como hiperplasia e formação de nódulos
no pâncreas.32,33 Grupos de pesquisadores identificaram
a isoflavona como potencial agente na etiologia de
disfunções da tireóide em adultos e crianças.8,13,16,26,27
Pesquisas também sugerem que a isoflavona inibe a
síntese do estradiol e de outros hormônios esteróides,
causando distúrbios hormonais,6,10,28 os quais podem
afetar especialmente os neonatos masculinos, particu-
larmente vulneráveis à ação dessas substâncias.23,24,45
Por fim, pesquisas mais recentes relacionam o alto
consumo de soja com infertilidade em homens adultos7
e demência entre idosos.21
Algumas controvérsias pontuais podem ser destacadas
nesses estudos. A relação de fitatos na soja e sua ação
bloqueadora de ferro nas pesquisas mencionadas11,22 é
questionada em outros estudos,5,35 o que torna a questão
inconclusiva. Também com relação à influência dos
fitatos da soja na absorção de zinco, o Food and
Drugs Adminstrationa (FDA) assume que as pesquisas
realizadas nessa área34,48 são de difícil interpretação
de evidência.
Outras controvérsias aparecem no campo de estudos da
relação entre consumo de soja e incidência de câncer de
mama. Enquanto alguns estudos29,30 mostram que a soja
oferece efeito protetor contra câncer de mama, outros
alertam que os efeitos estrogênicos da isoflavona podem
ser perniciosos para mulheres com propensão a esse
tipo de câncer hormônio-dependente.12,30,39,40 Estudo
de revisão recente alerta que tal relação não procede e
precisa ser investigada com mais profundidade.51
Enquanto as controvérsias não são dissolvidas e o risco
real não é detectado, o dilema científico sempre vem
acompanhado da recomendação: mais estudos devem
ser realizados. Diante da inconclusividade, a indústria
de alimentos seleciona os estudos que lhe convêm
para estimular as vendas e sensibilizar especialistas
da área da saúde.
Sabe-se que 60% dos alimentos processados disponíveis
nos supermercados norte-americanos contêm soja.15
Entre esses produtos estão sucos à base de extratos de
soja, hambúrgueres vegetarianos, embutidos de carne e
frango, bolos, sorvetes, milkshakes, barras de cereais e
até água com sabor de frutas. No Brasil, a quantidade de
soja invisível consumida via alimentos industrializados
não é muito diferente da encontrada nos Estados Unidos
e aumenta progressivamente. Tal aumento é resultado de
forte estratégia de marketing, com o apoio de pesquisas
científicas, que focam o consumidor especialmente
preocupado com questões de saúde.
A prática da reflexividade, motor de muitas das trans-
formações sociais na modernidade, deve ser conside-
rada no processo de construção social aqui analisado,
pois torna-se cada vez mais difícil definir realmente um
alimento saudável. As variadas escolhas alimentares
têm sido objeto de constante reformulação, a partir de
novos estudos e informações. Diante de tantas opções,
aparecem também as incertezas. Assim, pode-se dizer
que as dúvidas sobre o que é um alimento saudável ou
de risco são produto da reflexividade e fazem parte
da modernidade, dois conceitos cujas fronteiras são
tênues e vulneráveis a diferentes influências constru-
ídas reflexivamente.
A pesquisa sobre soja é mais um exemplo de debates
ainda não solucionáveis da ciência. Diante do quadro
exposto, é possível afirmar que a discussão que envolve
a soja para consumo humano não parece caminhar em
direção a um consenso em curto prazo, e provavelmente
vai permanecer por mais tempo como controvérsia
em expansão. Isso porque, ao mesmo tempo em que
a discussão entre peritos ainda é incipiente no cenário
brasileiro (ao contrário do cenário norte-americano, por
exemplo), a mídia local vem replicando as pesquisas
que questionam a soja como alimento saudável e
as repercussões socioambientais da sojicultura têm
se tornado mais conhecidas. Apesar dos complexos
componentes socioambientais que podem dificultar a
resolução das controvérsias, gradualmente, a discussão
tende a envolver mais atores e o reconhecimento dos
riscos deve promover a reflexividade e contribuir para
diluir as controvérsias. Mais estudos científicos por si
só não podem resolver as complexas controvérsias em
torno do conceito de alimento saudável.
Também se destaca a fragilidade desse conceito, diante
dos inúmeros determinantes que envolvem a condição
de saúde. Sendo assim, é preciso pensar não somente
em alimento saudável, mas em alimentação saudável
inserida em um amplo contexto de qualidade de vida.
Mesmo diante da tendência de padronização do conceito
de alimentação saudável, baseado em práticas restritivas
e na racionalização moderna que enfatiza a perspectiva
energético-quantitativa, pode-se afirmar que tal conceito
tende a se tornar mais poroso e flexível, considerando
a dimensão cultural e socioambiental que envolve o
ato de se alimentar, bem como seu caráter polissêmico.
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