sábado, 24 de agosto de 2013

Soja, heroína ou vilã?

A soja ganhou status de alimento funcional, com ação preventiva de doenças cardiovasculares, a partir de pesquisas como a de Clarkson.9 Além disso, o consumo diário da leguminosa tem sido também associado à prevenção e ao tratamento de disfunções como hipertensão,18 hipercolesteronemia55 e osteopo- rose.38 Na mesma linha, pesquisas38,50 sugerem que a presença de fitoquímicos na soja faz dela um alimento funcional capaz de atuar na prevenção dos sintomas da menopausa, enquanto outros estudos afirmam que o consumo da soja ajuda a evitar o desenvolvimento de alguns tipos de tumores, como o de próstata,19,54 de mama14, 29, 53 e do trato urinário.49
As controvérsias em torno da soja emergiram a partir do levantamento das contra-indicações ao consumo regular de soja não-fermentada. Tais restrições já existiam na cultura alimentar dos antigos asiáticos, que consumiam regularmente soja fermentada na forma de miso, shoyo, nato e tempeh e usavam o grão apenas para adubação verde.47
Estudos identificam diferentes distúrbios nutricionais decorrentes do consumo de soja não-fermentada, como interferência na absorção de minerais como ferro11,22 e zinco,34,48 inibição da enzima tripsina,2,31,42,43 acúmulo de cálculos renais36 e alergenicidade,44,52 e desaconselham a ingestão da soja não-fermentada.
Outros estudos sinalizam a relação da soja com disfunções como hiperplasia e formação de nódulos no pâncreas.32,33 Grupos de pesquisadores identificaram a isoflavona como potencial agente na etiologia de disfunções da tireóide em adultos e crianças.8,13,16,26,27 Pesquisas também sugerem que a isoflavona inibe a síntese do estradiol e de outros hormônios esteróides, causando distúrbios hormonais,6,10,28 os quais podem afetar especialmente os neonatos masculinos, particu- larmente vulneráveis à ação dessas substâncias.23,24,45 Por fim, pesquisas mais recentes relacionam o alto consumo de soja com infertilidade em homens adultos7 e demência entre idosos.21
Algumas controvérsias pontuais podem ser destacadas nesses estudos. A relação de fitatos na soja e sua ação bloqueadora de ferro nas pesquisas mencionadas11,22 é questionada em outros estudos,5,35 o que torna a questão inconclusiva. Também com relação à influência dos fitatos da soja na absorção de zinco, o Food and Drugs Adminstrationa (FDA) assume que as pesquisas realizadas nessa área34,48 são de difícil interpretação de evidência.
Outras controvérsias aparecem no campo de estudos da relação entre consumo de soja e incidência de câncer de mama. Enquanto alguns estudos29,30 mostram que a soja oferece efeito protetor contra câncer de mama, outros alertam que os efeitos estrogênicos da isoflavona podem ser perniciosos para mulheres com propensão a esse tipo de câncer hormônio-dependente.12,30,39,40 Estudo de revisão recente alerta que tal relação não procede e precisa ser investigada com mais profundidade.51
Enquanto as controvérsias não são dissolvidas e o risco real não é detectado, o dilema científico sempre vem acompanhado da recomendação: mais estudos devem ser realizados. Diante da inconclusividade, a indústria de alimentos seleciona os estudos que lhe convêm para estimular as vendas e sensibilizar especialistas da área da saúde.
Sabe-se que 60% dos alimentos processados disponíveis nos supermercados norte-americanos contêm soja.15 Entre esses produtos estão sucos à base de extratos de soja, hambúrgueres vegetarianos, embutidos de carne e frango, bolos, sorvetes, milkshakes, barras de cereais e até água com sabor de frutas. No Brasil, a quantidade de soja invisível consumida via alimentos industrializados não é muito diferente da encontrada nos Estados Unidos e aumenta progressivamente. Tal aumento é resultado de forte estratégia de marketing, com o apoio de pesquisas científicas, que focam o consumidor especialmente preocupado com questões de saúde
A prática da reflexividade, motor de muitas das trans- formações sociais na modernidade, deve ser conside- rada no processo de construção social aqui analisado, pois torna-se cada vez mais difícil definir realmente um alimento saudável. As variadas escolhas alimentares têm sido objeto de constante reformulação, a partir de novos estudos e informações. Diante de tantas opções, aparecem também as incertezas. Assim, pode-se dizer que as dúvidas sobre o que é um alimento saudável ou de risco são produto da reflexividade e fazem parte da modernidade, dois conceitos cujas fronteiras são tênues e vulneráveis a diferentes influências constru- ídas reflexivamente.
A pesquisa sobre soja é mais um exemplo de debates ainda não solucionáveis da ciência. Diante do quadro exposto, é possível afirmar que a discussão que envolve a soja para consumo humano não parece caminhar em
direção a um consenso em curto prazo, e provavelmente vai permanecer por mais tempo como controvérsia em expansão. Isso porque, ao mesmo tempo em que a discussão entre peritos ainda é incipiente no cenário brasileiro (ao contrário do cenário norte-americano, por exemplo), a mídia local vem replicando as pesquisas que questionam a soja como alimento saudável e as repercussões socioambientais da sojicultura têm se tornado mais conhecidas. Apesar dos complexos componentes socioambientais que podem dificultar a resolução das controvérsias, gradualmente, a discussão tende a envolver mais atores e o reconhecimento dos riscos deve promover a reflexividade e contribuir para diluir as controvérsias. Mais estudos científicos por si só não podem resolver as complexas controvérsias em torno do conceito de alimento saudável.
Também se destaca a fragilidade desse conceito, diante dos inúmeros determinantes que envolvem a condição de saúde. Sendo assim, é preciso pensar não somente em alimento saudável, mas em alimentação saudável inserida em um amplo contexto de qualidade de vida. Mesmo diante da tendência de padronização do conceito de alimentação saudável, baseado em práticas restritivas e na racionalização moderna que enfatiza a perspectiva energético-quantitativa, pode-se afirmar que tal conceito tende a se tornar mais poroso e flexível, considerando a dimensão cultural e socioambiental que envolve o ato de se alimentar, bem como seu caráter polissêmico. 

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